17 de dez. de 2017

Ritmos e Ritos Afro-Baianos

Um pouco de história da música afro-baiana

Imagem Mosaico da história da música afro-baiana


Minha pele é linguagem
E a leitura é toda sua
Jorge Portugal e Lazzo

Se tivesse de fazer uma fotografia da música afro-baiana dos últimos anos seria mais ou menos assim:

As Origens
A gente começaria com os Filhos de Gandhi, um tradicional afoxé de Salvador, que, centrado no agogô, influenciaria o Gil dos anos 1970 e o Moraes Moreira com vertente ijexá dos anos 1980.
Batatinha e Riachão souberam alinhar o cotidiano da Bahia com versos estilizados sob a harmonia do batuque, rediscutindo as origens do samba na Bahia.
Nesta gênese de precursores Dorival Caymmi proporcionou um som cadenciado, único, sobre o que a Bahia teria para mostrar ao mundo.
Os Tincõas vieram como um coral negro, fazendo aqueles cânticos inebriantes e nos convidando para a integração da mente, do corpo e do espírito.

Os Filhos
A partir dessa leitura de música e de mundo, surgiriam os blocos afros, que reivindicavam políticas afirmativas de autoria, identidade e celebração. Com Ilê Ayiê, apareceram agremiações como Olodum, Muzenza, Malê de Balê, Cortejo Afro, Badauê, Araketu e Timbalada.
Na fonte desta produção cultural intensiva nasceram músicos como Lazzo Matumbi, Édson Gomes, Dionorina, Gerônimo e Margarete Menezes.
Depois desta geração floresceram vozes como Virgínia Rodrigues, com o canto negro frente ao profano e ao sagrado; Juliana Ribeiro e Mariene de Castro que recuperaram as tradições do samba da velha Bahia; Saulo Fernandes que saiu de cima dos trios e viajou pelo samba-reggae e pelo ijexá; Larissa Luz, voz potente e navegante dos sons africanos, que despediu-se do samba-reggae e mergulhou no afro e no pop eletrônicos.
Se na década de 1980 os Novos Baianos fizeram a interação da Tropicália com os acordes da guitarra baiana, na década de 2010, o Baiana System apareceu dando novos tons à guitarra elétrica mais compacta, inventada na Bahia, criando um som transversal por meio de uma batida rítmica de Reggae, Rap e Rock, ao criar diálogos desconcertantes entre os Sounds Systems da Jamaica e as harmonias do trio elétrico.

As Interações
Toda essa produção cultural não se construiu sozinha: o ritmo afro-baiano dialogou com outras manifestações culturais além da espelhada no umbigo. Diversas parcerias surgiram nos anos 1980, como Margarete e David Byrne; Olodum e Lazzo com Jimmy Cliff; Olodum com Paul Simon e Michael Jackson.
Além desses intercâmbios, Robert Nesta Marley inspirou as criaturas e as criações do povo de diáspora, fomentando a interligação entre o samba e o reggae. Para quem quiser se inteirar dessa influência, consulte a obra de Gilberto Gil a partir dos anos 1980. Lá estão redesenhados funk, rock, reggae, samba e baião; todos esses ritmos reinventados sob a influência de Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, João Gilberto e Bob Marley.

A Diversidade
Tudo isto denota uma característica marcante da música afro-baiana: a diversidade. Diversidade manifestada na consistente ligação entre essa expressão cultural e as religiões de matrizes africanas, por meio da apropriação dos diversos ritos político-culturais dos negros com o divino e com a vida terrena.
As criações musicais feitas na Bahia incorporaram os cânticos em saudação aos orixás, confrontando o sentido de alegria próprio dos povos de origem africana frente às desigualdades sociais existentes.
No caldeirão dessa diversidade, se tivesse de dar um nome à música afro-baiana, este seria refluxo. Refluxo no sentido de revirar, revolucionar, retomar e retornar, porque os movimentos nesta música são como redemoinhos, que, dependendo de onde a gente estiver, pode significar equilíbrio, como também desequilíbrio.

A Transversalidade
Existiram alguns músicos que de certa forma caminharam de forma transversal na música afro da Bahia, universalizando o ritmo dos cânticos e dos tambores.
João Gilberto foi o primeiro deles ao instaurar o criativo toque de cordas, dando nova face ao samba, que passaria, além da condição de samba de roda, à condição de samba-canção .
 Já Caetano e Gil fizeram antropofagia cultural ao misturar o rock, o rap, o funk e o reggae como expressões artístico-culturais transmutadas em samba samba-canção, bolsa nova e tudo o mais, traduzindo em novas harmonias o cancioneiro da música popular brasileira.
Os Novos Baianos, influenciados por João Gilberto, reinventaram as batidas do samba, introduzindo as cordas elétricas, ajudando na transformação do trio elétrico de instrumento de som utilizado para tocar marchas e frevos em uma máquina de múltiplos ritmos e acordes. Eles ajudam na propagação do carro de som inventado e compartilhado mundo afora por Armandinho, Dodô e Osmar, contribuindo para as novas identidades assumidas pelo carnaval da Bahia quanto à vertente tecnopercursiva.
Não podemos esquecer da proeminência das matriarcas Maria Bethânia e Gal Costa, que sempre dialogaram com a música de rua, com o recôncavo baiano e com as vivências cotidianas do povo, trazendo refinamentos para as canções que eram produzidas nos quintais da Bahia de todos os santos.

O Mercado
Precisamos falar de mercado: na década de 1980 insurgiu um grupamento musical alicerçado em gerência, negócios, finanças e marketing. Esses músicos se tornaram donos de trios elétricos, blocos de carnaval e camarotes; passaram a gravar discos com frequência e gerenciar apresentações em grandes espaços; alguns se tornaram vitrines em programas de auditório nas redes de televisão brasileira. Com eles a indústria cultural na Bahia ganhou novos rumos.
Dali saíram bandas centradas no samba, como Gera Samba, Terra Samba e Harmonia do Samba, e produções musicais difusas que misturavam ritmos que iam do galope ao samba de roda, do lundu ao reggae, do frevo ao samba-reggae. Luiz Caldas e banda Acordes Verdes, banda Reflexu's, banda Mel, Carlinhos Brown, Daniela Mercury e Chiclete com Banana são alguns dos representantes dessa tendência da música baiana.
A partir desse pessoal surgiu uma cadeia econômico-produtiva, que resultou em numerosa gama de músicos desejosos de proeminência no cenário musical brasileiro. Mas isto pode ser tema de outro texto.

As composições
Por trás desse grupamento de diversos se escondiam compositores que elaboraram esse mosaico de percepções sobre os modos e hábitos dos negros da Bahia. Edil Pacheco, Paulo César Pinheiro, Capinan e Roberto Mendes são alguns dos homens de produção de escrita e harmonias musicais que sustentaram as vozes dos arautos que comungaram a estética dessa gente.
Junto a eles há uma multidão de letristas populares: homens comuns que iam aos ensaios dos blocos afros e afoxés e lá se descobriam criativos e criadores de uma nova forma de produzir cultura. Esses homens do povo nos mostraram a imagem do grande refluxo que é a produção da música afro-baiana.  Com eles a poesia e os acordes se transformariam em canções singulares e identitárias.

De tudo isto, ficou a imagem de uma produção artístico-político-cultural diversa e divergente, mas alinhada às matrizes de origem africana, que se olham e se refletem num cantar em forma de oração, em forma de dor, em forma de alegria: em busca de afirmação.

Até a próxima!



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